09 julho 2017

Dessilêncio

olho aquele olhar que me olha
sem que dirija algum olhar
a nenhum lugar:
vejo-o lá
quando o olhar que me vê 
não o vejo
porque nem está

não se (h)ouve palavra.
no seu dessilêncio
verbo ausente do denso
que se pensa dito
e é o tudo:
só mais uma gota na taça
e o imenso do nada quanto se faça

o que é feito em verdade
é feito sem que se importe 
no deixe que se fale ou cale
é assim que ficará um sopro no alto
um passo no vale:
só serei o que sou
quando do mim mesmo
me estiver falto
e a um passo do falhe

aliás o de Olhar
não se diz de nenhum jeito
eu mesmo não falo de coisa alguma
e este poema
como bem podem (não) ver
nem chegou a ser feito

06 julho 2017

Sentença

a cada árvore plantada
há mil derrubadas
ou ainda mais
e já são tantas
quem nem deixam sinais

a cada água que é clara
há mil esgotadas
de veneno e fedor 
e já são tantas
que nem se nota o horror

a cada balada composta
há mil baladas 
na cara ou na testa 
e esse rastro de sangue 
é tudo o que nos resta

a cada animal que é amado
há mil massacrados
ou sob tortura
e essa doença da vida 
já não tem mais cura

a cada beijo que é dado
há mil que são fingidos
e ainda mais outros mil
daqueles malditos

e tenho dito

04 julho 2017

Ladrão com Honra

há o ladrão covarde
e o ladrão com honra:
o ladrão covarde
vira político
abre uma empresa
ou funda uma igreja
para poder roubar
com a polícia e a lei do lado

veja bem:
eu não escrevi

que todo político empresário ou pastor
quis sê-lo por ser ladrão
(é preciso que se diga

pois há quem entenda tudo errado)

já o ladrão com honra
(sejamos francos)
assalta bancos

01 julho 2017

A Época da Ausência

a cada passo dado pela humanidade
morre um otimista
que não percebe o passo
e não sabe que morreu
_________________


acreditar (ainda)
nesta civilização
como sendo civilização
é algo menos de ingênuo
e mais de perverso
_________________

dizem que vivemos tempos de desespero...

discordo.
para o desespero é necessária a consciência
de que se perderam as esperanças
essa consciência não a temos:
vivemos tempos de vazio

vivemos a época da ausência

29 junho 2017

O Bem-Sucedido

vivia para o trabalho
mas estava certo de que não
achava que era dos que não perdiam
oportunidades:
não se desperdiça uma chance

de se ganhar um pouco mais
não se recusa
só mais uma horinha extra
não se diz não para mais um cliente
não se deixa de aumentar a poupança
para se vagabundear nas férias

ninguém deve se dar por satisfeito
se pode aumentar sua renda no próximo ano
não se vive sem ambições sem metas de crescimento
mais diplomas na parede
é mais dinheiro na conta do banco

o descanso pode esperar
a carreira não
a saúde pode esperar
a promoção não
o amor pode esperar
o status social não
a alma pode esperar
o sucesso não

ficar ouvindo música
não vai dar um carro novo
não é se divertindo que se reforma a casa
investimentos não brotam de passeios

se se deixa de prosperar
o que os outros vão dizer?

primeiro progredir

para um dia se viver

mas o progresso não para...

27 junho 2017

Questão de Honra

o amor
é uma questão de trato
a confiança
é uma questão de taco
a dor
é uma questão de trégua
a política
é uma questão de treta
a justiça
é uma questão de troca
a vida 
é uma questão de transa
a solução
é uma questão de trago
o fim
é uma questão de tempo

25 junho 2017

o verso não é meu

o verso? deixo que ele saia
como sendo mulher que dispa sua saia
e sem que eu pense em nada além de pensar-me

o verso nada tem a ver do que penso
a arte que por ele passa quando passa
vem de um outro todo que nem tenho
vento que se vaga não comigo
lago que se nada no não-dito

deixo que passe o que se passa por mim
por que não importa aquilo do que sinto
e o que corre no sangue do que tenho
de que vale o vale que me afundo?

o verso é vasto longo e fundo
vai muito além do que nem está em mim:
por que querer que ele fale de um eu?
por que o verso tem que ser o que é meu?

22 junho 2017

Vida Moderna x Vida

há tanta coisa no tempo de vida
que não há mais tempo para a vida
viver tornou-se uma ordem a ser acatada
dada por todos que não são ninguém
sob o pretexto de uma escolha
em que não se escolhe

faça isso faça assim faça o certo
seja feliz tenha bens alcance o sucesso
trabalhe estude se informe
compre consuma ostente
vá à academia faça curso de inglês caminhe no asfalto
não pode beber não pode fumar mas pode comer porcaria
tenha um celular avançado
nas férias vá para a praia
consulte um médico faça exames
empine sempre um sorriso
ajude alguma causa social
goste do que está na moda
seja o que se espera de ti
tenha planos tenha metas tenha ambições
e os atinja

mas não basta ter
é preciso mostrar que se tem:
não se é feliz nem se tem sucesso
se os outros não souberem
que você é feliz e que você tem sucesso

faça isso tudo
e no que sobrar do tempo
lamente não ter tempo pra nada

20 junho 2017

mundotrágico

motosserras
motocerros
motossangas
matamorros
matassorros
matadouros

maremotos
maresmortos
maresmudos
mardemonstros
mardemedos
mardemerdas

amazônico
malozônico
magrocórrego
holocáustico
agrotóxico
agrotúmulo

mundocômico

18 junho 2017

(Só) Trabalhe!

quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer: "SÓ trabalhe!"
é a melhor forma de dominação:
quem só trabalha
não tem tempo para ler
não tem tempo para ouvir
não tem tempo para ver
não tem tempo para pensar
não tem tempo para sentir
para se inquietar
para questionar
para contemplar
enfim, não tem tempo para a vida

quem não vive
não se importa com o que vive
não se importa com o que sofre
não se importa com o que morre

a era pós-humana
a era pós-tudo
quer só máquinas quer só robôs
porque eles SÓ trabalham

quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer "SÓ trabalhe!"

eles só não dizem só
porque não é só
isso


15 junho 2017

Duas Palavrinhas

I - do poema futuro:

em cadáverso
um cadáver
em cadáestrofe
uma catástrofe

II - do tempo:

o problema do tempo 
é que um dia ele chega
e quando chega
o tempo que passou 
não chegou:
o tempo é sempre 
insuficiente

13 junho 2017

Dos Homens sem Paz

I  - a próxima guerra
dos homens sem água
será pela mágoa
de uma terra 
acabada sem trégua
pelos homens sem garra e sem guelra
morridos à míngua

II – a espada
na terra cravada
será cruz

a cruz
no pulso empunhada
será espada

III – os homens só terão paz
quando a paz for daquelas
de cavar covas

11 junho 2017

Contradição

afirmam alguns
que a vida surgiu do nada
mas o que seria o nada?

de duas
uma:

I – a toda vida que há
surgiu do nada que não é?
mas como
se até na matemática
qualquer número
vezes zero
é sempre zero?

ou o nada
é só um nome que damos
às causas
que não alcançamos
em nossos limites?

II – ou então o nada
é o nada mesmo
e ponto.

nesse caso
a vida que vemos
também é um nada

se é um nada
não existe

ou existem nadas
que existem?

e quem vê o que não existe
se só acredita vendo
acredita no que não existe

como pode o que não existe
existir?

08 junho 2017

Soneto de um Último Século

vasta contemplação do fim do humano 
surgiu-me entre beijos de horror e caos
sangue felídeo daqui até o Laos
lábios de som em desastre oceano

teu rosto não-visto em réquiem brahmiano 

nunca acabou de acabar-me ao final 
teu olho ainda sinto entre um temporal 
e entre estes céus de vermelho romano 

agora é tarde o distante do cedo

ergueu-se o fim e sonhei-te perplexo
violino e piano entre pânico e medo 

mas em tuas mãos havia um reflexo 

em teu cabelo ocultava um segredo: 
o de que a morte é o mistério do sexo


06 junho 2017

Sobre a "Festa" no Instituto Evangélico : adiantei-me

O poeta, o escritor sem fama, que é o meu caso, é um cara chato. Como não tem mídia para o promover, tem que promover a si mesmo. Por isso que vou repostar um poema que publiquei aqui em 5 de abril, o qual expressa, em sua primeira parte, exatamente a situação ocorrida no Instituto Evangélico de Novo Hamburgo. Seu título é "dos Brasileiros e da Humanidade": 

I - o complexo de pequenez e de inferioridade do brasileiro 
é tão grande e tão superior 
que ele precisa escolher alguns como mais inferiores 
para humilhar oprimir eliminar e pôr a culpa 
e assim se sentir superior 

II - a humanidade se cansou 
(assim como quem já assistiu a tantos filmes de horror 
que já nada mais choca ou surpreende): 
coisa alguma faz efeito algum .
quando se chega a esse ponto 
é preciso mudar a fundo 
ou morrer e pronto

04 junho 2017

600 mil hectares A MENOS de reservas e milhões de hectares DESMATADOS perdoados

Com um Congresso formado principalmente por ruralistas, gigantes do agronegócio e por grandes empresários, e com um presidente que é apenas um fantoche na mão dos interesses econômicos, o que se pode esperar? Além, é claro do massacre dos direitos trabalhistas, devemos também esperar o massacre do nosso já massacrado meio ambiente. 

Agora, Temer e o Congresso querem reduzir 600 mil hectares (o equivalente a QUATRO cidades de São Paulo) a Floresta Nacional do Jamanxim, no já muito desmatado estado do Pará, ou seja, na Amazônia. E quer fazer coisa semelhante em várias outras reservas na Amazônia. Se com todas essas reservas, já há uma grande devastação em muitas áreas da Amazônia, inclusive o ritmo do desmatamento só aumentou desde o início do (des)governo Temer, imaginem como será com a redução dessas reservas?  Em poucos anos, teremos um ritmo alucinante de destruição na Amazônia como nunca antes visto. Quer saber mais sobre o assunto? Clique aqui.

Não bastasse isso, a turma do lucro a qualquer custo ainda anistiou, ou seja, perdoou crimes ambientais, com o seu nefasto Código (des)Florestal. Em 5 anos, foram perdoados 41 milhões de hectares desmatados em áreas que deveriam ser de CONSERVAÇÃO PERMANENTE. Ficou tudo por isso mesmo. Ou seja, natureza destruída e não restaurada. Mais sobre assunto aqui

Para onde vamos, caro leitor? Tu sabes, o abismo é logo ali.


02 junho 2017

O (Des)sentido da vida

passamos a vida fazendo coisas
que não gostaríamos de fazer
para fazer as coisas que gostaríamos
mas que não teremos tempo de fazer
por ter feito tanto o que não gostaríamos

passamos a vida deixando de ser o que em fundo somos
com o objetivo único de ao fim um dia poder ser:
mas tanto deixamos de ser para poder ser
(para apodrecer)
que quando podemos ser 
já não mais somos

31 maio 2017

A Era da Superfície

I - época contraditória: 
as pessoas estão tão sentimentais 
e insensíveis: 
se emocionam. mas só com merdas: 
choram pelo mocinho da novela 
cagam para o massacre do que é vida 

II – a tarefa do artista 
é a mais ingrata a mais inútil: 
precisa atingir o verdadeiro sentimento humano 
ou seja trabalha cada vez mais com o nada 
seja de seu seja de outros 

III - de modo que o artista 
que mais alcança o coração alheio 
é o que melhor esgota o seu

28 maio 2017

Sou a favor da Ditadura

Sou a favor da reforma da previdência, desde que eu, assim como as empresas, fique anos sem pagar impostos e depois seja perdoado.

Sou a favor da sonegação fiscal, desde que quando eu comprar um produto ou pagar por um serviço tenha o imposto que eu pago, que será sonegado, devolvido pra mim.

Sou a favor,  assim como o deputado Jair Bolsonaro, que as mulheres ganhem menos por seus trabalhos (afinal, elas engravidam), desde que essas mulheres que ganham menos não sejam a minha mulher, a minha mãe ou a minha filha.

Sou a favor do combate às minorias menos favorecidas, que só incomodam mesmo, desde que não toquem naquilo em que eu sou minoria.

E, para encerrar, sou a favor da ditadura, desde que  eu seja o ditador.



26 maio 2017

Assassinato

vida
é aquilo que nos deixa a cada instante
não porque o tempo passa e então se morre
mas porque o tempo passa
e não se vive

tempo
é aquilo que não se sabe
que se perde a cada instante:
pensa que não perde quem trabalha
mas só não perde quem tem alma

alma
é aquilo que se mata
a todo instante

25 maio 2017

Era da Velocidade

época da velocidade
a jato a vácuo 
a comida comprada pronta 
a morte a 200 por hora 
em milésimos de segundos 

o amor é questão de fundos
ou de voltas pelo mundo 
só o tempo do beijo ou do sexo 
sem volta e sem nexo  

celular computador internet:
é a vida no agora e no antes 
sem que haja adiantes 

as correias dos motores mecânicos 
poesia de sensor eletrônico 
correrias dos centros urbanos 
agonias dos supér(fluos) humanos
as mídias domando as massas 
os seres extintos em massa 

o instantâneo da desintegração nuclear 
o descartável do coração e do cérebro 
a ausência de sentidos vitais... 

e o meu poema 
que já durou tempo demais

21 maio 2017

Questão de Preço

não verás saída
para  o que te selaram como preço
pois verás um cerco que te prensa
e um circo de esterco que te apreça

é só este charco que te acerca:
desde o que pensas
(que é o que te ditam as imprensas
a te enfiar pelo rabo)
até essa pressa
de consumir a todo apreço
o que te ditam as empresas
a transbordar pelo ralo

de modo que a nossa queda
é só questão de preço e passo
ao abismo
que se paga e a que se vai
e é inútil todo alerta:
todas essas eras de alarde
o tempo com desprezo
esmaga cedo ou tarde

19 maio 2017

Temer, JBS, Sartori, Judiciário...

Não adianta, hoje tem que se falar em política. Eu tenho quatro pontos a chamar a atenção sobre a história toda. Vamos a eles:

1º - Tem muita gente bradando "Fora Temer", que o cara tem que sair, que não gosta do seu governo, mas, no entanto, porém, contudo, todavia, está gostando e apoiando TODOS os projetos que o seu governo manda para ser aprovado no Congresso: congelamento de investimentos, Terceirização, Reforma Trabalhista, enfim, está achando tudo muito certo, tudo muito bom. Então, como que quer que o Temer saia? Ou é burrice ou é hipocrisia.

2º - Fala-se muito do PT do Lula, agora, do PSDB do Aécio. Mas e o PP da Ana Amélia e o PMDB do Sartori... estão esquecendo? Então, vou refrescar a memória.  Esses dois partidos receberam juntos 104 milhões da JBS e da BRF em 2014. Só o Sartori, recebeu para sua campanha mais de 2 milhões e meio. Foi mais que os 2 milhões do Aécio. Ah, mas foi para a campanha. Dizem. Seja como for, recebeu. Deem uma pesquisada.

3º - Observem esse trecho do "Aúdio do Temer", divulgado hoje:

"Temer - O Eduardo (Cunha) resolveu me fustigar... Não tem nada a ver com a defesa. O MORO INDEFERIU 21 perguntas dele que não tem nada a ver com a defesa dele."

Deixa ver se eu entendi: O Moro NÃO PERMITIU 21 perguntas do Cunha que teriam a ver com Temer? É isso? Por que será? Talvez porque o Cunha também tivesse as respostas...

4º - Ainda com relação ao áudio, o Joesley da JBS fala que tem 2 juízes e um procurador nas suas mãos. Ou seja, está confessando um crime ao PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Depois, o presidente, o Temer, rebateu que NÃO ACREDITOU no Joesley. Não acreditou? Essa é a função de um Presidente da República: ouvir de um megaempresário um crime em que se envolve o Poder Judiciário do país e "não acreditar" e deixar tudo por isso mesmo? Mas o pior não é isso. O pior é um indivíduo TER A INTIMIDADE de confessar um crime ao presidente de um país na maior tranquilidade, sabendo, que, sendo verdade, nada lhe aconteceria. Talvez, porque sabia que o outro também é como ele...

Falando em juízes, procuradores na mão de criminosos, não está na hora de se investigar o Judiciário brasileiro também? E quem é que investiga?

17 maio 2017

Progresso e Tripas

eu pouco fiz que me tornasse lido
tudo que digo não pretende o mundo
tudo não fundo nem me importa tê-lo
então meu selo é como um vinho extinto
sonho já ido com estas lentas mortes
que de tão fortes nem nos dizem nada
como na estrada aquele bucho aberto
que de tão perto nem nos é mais visto:

gato-mourisco atropelado a um canto,
o humano pranto é bem mais podre e findo

15 maio 2017

das Desditas que Desdigo

dos decursos dos desígnios
das delongas das demoras
dos despistes das desgraças
das desforras das derrotas
dos descuidos das demências
dos dizeres dos distantes
dos deságues dos desejos
nos divinos dos destinos

13 maio 2017

das Artes

só há compreensão
de alma para alma:
quem não a tem em si
não a percebe no que é outro
nem nos seres
nem nas coisas
nem nas artes

nem no todo
nem nas partes

somente o que tem alma
capta o que de alma
há no que é
(para quem não a tem
não há nada)

alguns questionarão:
“mas...
de que tipo de alma ele fala?”

para quem a tem
não é preciso que se diga
já se entende
com o que se cala

11 maio 2017

O uruguaio Benedetti, sobre diretores de empresas e sobre médicos

O uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), na charmosa foto acima, escreveu algumas das grandes páginas da literatura latino-americana. Várias delas estão na sua obra-prima "A Trégua", romance publicado em 1960 e posteriormente filmado, concorrendo ao Oscar de melhor filme estrangeiro e que assombra por sua profundidade psicológica a agudeza na expressão e análise do drama humano. Extraí dois trechos da obra em questão, que me chamam a atenção pela sua aplicabilidade à realidade brasileira atual. Os trechos em questão referem-se a diretores de empresas e a médicos.

Sobre diretores de empresas:

Imagino que eles, quando se refestelam em suas poltronas estofadas da sala da Diretoria, devem se sentir quase onipotentes, pelo menos tão perto do Olimpo quanto deve se sentir uma alma sórdida e negra. Chegaram ao máximo. (...) Para esta pobre gente, o máximo é chegar a sentar em cadeiras presidenciais, experimentar a sensação (que para outros seria por demais incômoda) de que alguns destinos estão em suas mãos, ter a ilusão de que resolvem, de que dispõem, de que são alguém. Hoje, contudo, enquanto os olhava, não conseguia considerar suas caras como pertencentes a Alguém, mas sim a Algo. Parecem-me coisas, não pessoas. (...) Mas são pessoas. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infamante das piedades, porque a verdade é que eles formam para si uma casca de orgulho, um invólucro repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem da mais horrível variante da solidão: a solidão de quem não tem sequer a si mesmo.

Sobre médicos:

Há médicos que gostam de aterrorizar, ao menos de anunciar a proximidade de terríveis complicações, de perigos indefinidos e implacáveis. Depois, se a realidade não é tão sinistra, sobrevém uma grande sensação de alívio, e o alívio familiar é, no mais das vezes, o melhor clima possível para pagar sem aborrecimento, até com gratidão, uma conta ABUSIVAMENTE ALTA. Quando alguém pergunta ao médico, com humildade, quase com vergonha, sentindo claramente o constrangimento de tocar em um tema tão vulgar e grosseiro diante de quem sacrifica sua vida e seu tempo pela saúde do próximo: “Quanto é, doutor?”, ele sempre diz, acompanhando suas palavras com um gesto generoso e compreensivo de desconforto: “Por favor, amigo, logo mais tratamos desse assunto. E não se apresse, pois comigo não haverá problemas.” (...) Depois, quando chega finalmente a hora de discutir o assunto, vem a conta gorda, em separado.

08 maio 2017

Sou Péssimo

as pessoas querem ser agradadas acariciadas justificadas
querem autoajudas que lhe digam que suas merdas
não fedem tanto
e que podem seguir cagando ad infinitum 
até transbordar o planeta

as pessoas querem ler coisas belas-bonitas
daquelas de se pendurar em paredes
palavras-vassouras que varrem seu próprio horror
para debaixo do tapete em farrapos da existência

as pessoas querem palavras light
que podem ser digeridas-lidas durante banquetes
que não pesem nem no estômago nem na consciência

as pessoas querem palavras legais-boazinhas
de sorrisinho humilde como mordomo de palácio
que entregam cartinhas e flores
em bandejas de ouro

enfim, as pessoas até gostam 
de escritores-poetas
desde que façam literatura de enfeite...
ok, é tudo mesmo tão lindo!
mas ainda bem que sou péssimo nisso

06 maio 2017

A Primeira Sinfonia

Amanhã, dia 7,  é aniversário de Johannes Brahms. 184 anos. Como já é tradição, deixo algo para ou sobre meu compositor favorito e influência de vida. Ouvindo, mais cedo, sua espetacular 1ª Sinfonia, resolvi escrever um pouco a respeito.


A Sinfonia nº1, em Dó menor, opus 68, estreou em 4 de novembro de 1876, em Karlsruhe, Alemanha. Brahms já estava com 43 anos. Ou seja, demorou muito para compor sua primeira sinfonia. Um dos motivos, era a sombra de Beethoven que pairava sobre os compositores da época, particularmente sobre Brahms, que tinha Beethoven e Bach como seus maiores mestres. Parecia que Beethoven já tinha feito tudo em termos de sinfonias. O que não era verdade. Estão aí Brahms, Bruckner, Mahler, Shostakovich, por exemplo, para provar. Mas o próprio Brahms chegou a declarar:
"Nunca terminarei uma sinfonia. Não podes fazer ideia de como afeta o espírito de um indivíduo ter que escutar constantemente os passos de um gigante atrás de si." Brahms referia-se a Beethoven. 


De modo que Brahms levou 20 anos para compor a Sinfonia nº1. E talvez tenha sido melhor assim, pois o resultado foi a composição de uma das maiores e mais grandiosas sinfonias da história. A comparação com as sinfonias de Beethoven, particularmente com a sua última, a 9ª Sinfonia, foi imediata e inevitável. Hans von Bülow, famoso crítico musical da época, afirmou que a 1º Sinfonia de Brahms era a 10ª de Beethoven. Há nessa afirmação, dois lados: dizer que a sinfonia de um compositor é a continuação da obra de Beethoven, o maior sinfonista de todos os tempos, é um honra que não se mede. O outro lado é que parece que a sinfonia de Brahms se resumia a uma excelente continuação de Beethoven, sem um verdadeiro espírito próprio. Nada mais equivocado. A obra de Brahms é uma obra romântica, mas transcende o romantismo.

A Sinfonia nº1 de Brahms tem uma alma única em toda a literatura musical. É ostensível que a influência de Beethoven está presente, principalmente na estrutura da obra. No quarto movimento, surge uma comovente melodia que é uma espécie de homenagem à "Ode à Alegria" da última sinfonia de Beethoven. Mas nas páginas da 1ª Sinfonia está principalmente Brahms. O Brahms trágico, violento, pesado de um lado; de outro, o  Brahms terno, lírico, glorioso. 

A sinfonia inicia a todo vapor, com uma titânica massa orquestral, marcada pela percussão, que exala poder e fúria. O primeiro movimento, dominado por temas amplos e densíssimos, é todo construído sob o domínio de uma força indomável, em um clima marcial que beira a selvageria. No segundo movimento, surgem intensas melodias apaziguadoras, que, em sua doçura melancólica trazem-nos uma profunda tranquilidade de espírito. O terceiro movimento, alegre, grandioso, luminoso, deixo-nos simplesmente felizes. No entanto, no quarto e último movimento, retorna a tensão do primeiro, dessa vez não com tanta fúria, mas sob um profundo clima de mistério. Conforme o movimento vai se desenvolvendo, a força marcial do movimento inicial retorna com enorme carga emocional, como se fosse uma luta entre a tragédia e a vitória. Entrecortado por momentos de glória e revolta, e pelas tempestades românticas, o movimento encaminha-se para seu retumbante final, onde a vitória prevalece. 

04 maio 2017

Humanos são Absurdos

a sombra que paira sobre a humanidade
se aproxima a cada passo
dado por mim dado por ti:
eu, essa nulidade
tu, esse palhaço

a sombra que pesa sobre a humanidade
se agiganta a cada nada
se avizinha a cada riso
como quem sabe da curva da estrada
mas não sabe que dá num abismo

a sombra que sangra sobre a humanidade
se aprofunda a cada tudo
(que todo sucesso é o mesmo fracasso)
e o culpado sou eu, esse palhaço
e o culpado é tu, esse absurdo

02 maio 2017

do que Cansa no que se Vive

o que cansa no que se vive
é essa mania de ter que viver
de alguma forma determinada
como a sendo a fôrma da vida

o que cansa é essa coisa
de se ter que fazer alguma coisa
mas só dentro do que já estado
e de que aquilo que se faz
ter de ser considerado
como algo já feito
ou tido como aceito

o que cansa é esse algo
de ter de fazer algo na vida
mas não qualquer algo
mas só naquela regra
já por outros regrada entendiada definida

o que cansa
é esse ter de cansar-se sem sentido
sem nem entender-se o motivo
a não ser o de ter de cansar-se
até sentir-se morto
para que se diga 
que se está vivo

30 abril 2017

das Armas

um revólver taurus calibre 38
seis tiros 4 polegadas
de início
depois
pode ser pistola
uma beretta mesmo
ou quem sabe a magnum 44
ou até espingarda
garrucha
mosquete
arcabuz

de metralhadora já servem
as dos anos 30
tipo a thompson “tommy gun”

perfeito também é um fuzil de assalto
até uma sub
ou indo para a browning m2
sem desprezar canhões
bazucas
e granadas

e depois
até serve um punhal
uma besta da idade média
uma machadinha
arco e flecha indígenas
ou um facão de campanha
ou a faca mesmo
usada nas carneadas
e ainda uma espada de guerra
daquelas de ponta afiada
para deixar na cara
a assinatura

qualquer uma
tudo isso tem bom uso
quando se combate com a palavra
sangrenta da  Literatura