12 maio 2014

A Época da Aparência III – A Bunda Suja

e a humanidade afunda

porque as pessoas
não se  responsabilizam:
ninguém assume seu próprio peso
ninguém se olha no próprio poço

todos querem uma vida leve
com suco sorriso e sombra
sem preço retorno ou culpa
com tudo sem pagar nada
naquela existência fashion
e descolada
onde pensar tornou-se um saco
e sentir tornou-se piada

querem uma vida leve
onde se possa se ter de tudo
e não se paga por nenhum ato
com os lábios até as orelhas
e amputada a mão da consciência

como se não houvesse voltas
nem consequências

enfim
aquela coisa
em que todo mundo caga
e ninguém lava a bunda...

e a humanidade afunda

10 maio 2014

Uma Advertência

há que cuidado
com a sede de vida
que o que se sedia
na sede da alma
tem sede
em maior medida:

sede cauteloso
não se pode saciar ambas
pois que a vida é cordas bambas
entre um lado e outro do poço
e quem morde a carne
com muita ânsia
pode quebrar os dentes
em algum osso

nem tudo é eu posso:
às vezes fica tarde
e noutras – tempestade 
e pode (m)olhar  granizo ou seca
sobre o jardim...

pois nem tudo é simples assim
nem sempre se colhe tulipas
para desfolhar nas trilhas
e aparentar aquela imagem
de mil maravilhas

a vida não é só soprar
e fazer espuma:

por trás do arbusto
com a alegria das flores
se oculta o silêncio
do bote do puma...

07 maio 2014

Brahms e a 4ª Sinfonia

Brahms completa hoje 181 anos. Não posso deixar, como sempre faço, de prestar minha homenagem. Johannes Brahms compôs apenas 4 sinfonias. Mas todas elas absolutamente magistrais e estão no ápice da música sinfônica romântica. Brahms foi um exímio sinfonista. Dos maiores. Não é à toa que sua 1ª sinfonia foi considerada como sendo a 10ª de Beethoven. E todos sabem que Beethoven foi o maior de todos os sinfonistas.

Porém, entre as quatro sinfonias de Brahms, a última, a 4ª, Opus 98, é a minha preferida, juntamente com a primeira. É a mais madura, a mais bem acabada e a que melhor expressa a alma de Brahms. É uma das sinfonias mais trágicas e melancólicas já criadas. Estreou em 1885, em Meiningen, sendo acolhida com muito entusiasmo por toda a Europa.

Os acordes iniciais de seu primeiro movimento já carregam o ar de uma densidade emocional escura e apaixonada. É música pesada, tensa, sem, no entanto, perder por um instante sequer o seu obstinado lirismo, a sua poesia introspectiva. O movimento desenvolve-se com absoluta perfeição melódica e estrutural, em um total domínio da forma sonata, para desaguar em uma verdadeira catástrofe sonora, em um clímax furioso, marcial, devastador, que nos deixa a impressão de que o teto vai desabar sobre nossas cabeças.

O segundo movimento, dominado por um sentimento de outono, de inverno, é, ao mesmo tempo, lírico e solene, melodioso e taciturno, terno e misterioso. Passando pela vivacidade ensolarada e enérgica do 3º movimento, atingimos o 4º, onde a dilaceração emocional atinge o extremo, em notas carregadas de força e de tragédia. O breve instante de sol do movimento anterior dá lugar às sentenças sombrias do final da sinfonia, onde se percebe uma forte influência de Bach.

O 4º movimento, desenvolvido a partir de uma passacaglia, afirma de forma indubitável o caráter sombrio e pessimista da obra, ao mesmo tempo que é uma lição de orquestração. Ergue-se imenso, imponente, majestoso, como uma montanha castigada entre a tempestade. Que se mantém firme. É uma obra de ocaso, o sol se põe ao final da sinfonia em um horizonte avermelhado... Brahms dá adeus às sinfonias deixando um legado definitivo às gerações vindouras.

06 maio 2014

de uma Vida mais Alta

o que cansa no que se vive
é essa mania de ter que viver
no sentido de se viver
de alguma forma determinada
como a sendo a fôrma da vida

o que cansa é essa coisa
de se ter que fazer alguma coisa
mas só dentro do que já estado
e de que aquilo que se faz
ter de ser considerado
como algo feito
ou tido como aceito

o que cansa é esse algo
de ter de fazer algo na vida
mas não qualquer algo
mas só naquela regra
já por outros definida

o que cansa
é esse ter de cansar-se
sem sentido
sem nem entender-se o motivo
a não ser o de ter de cansar-se
até sentir-se morto
para sentir-se vivo

04 maio 2014

A Época da Aparência II - Os Homens Ocos

“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada.”

T.S.Eliot

nós somos os homens ocos
em cujas cucas
há um caldo análogo
a uma água de coco
que escorre pelos buracos
que ao menor toque do cosmos
se faz em cacos

os nossos crânios
foram esmagados por tacos
pelas pauladas
da vida mecânica
e pelos socos
do mundo vácuo

antes fôssemos loucos
mas apenas
nos acocoramos diante do caos
como os porcos
curvam as fuças diante dos céus

não valemos nem para troco
nada mais que macacos
e ainda mais tolos
pois nem os símios
transformam suas matas
em tocos

os homens ocos
chocos botando ovos
e mascarando a miséria
com miserável reboco

(na imagem, o quadro "Concerto em um Ovo", de Hieronymus Bosch)

02 maio 2014

A Época da Aparência I

aquele sorriso
sem siso
salivando seus sisos
dentes alvos e calvos
no sereno de à mostra
lábios largos e vastos
já tocando nas costas

aquele sorriso
distribuído nas ruas
de graça e bordas nuas
noticiado em jornais
em progressos governamentais
sublimado em cientistas
sempre dando nas vistas
telas de TV e capas de revista

aquele sorriso
da alegria da vida
do que se nunca duvida
e que a todos afaga
do ideal alcançado
e da esperança elevada...

aquele sorriso:
a máscara
do que se degrada

30 abril 2014

Ao Nada

aquilo que não
que não o quê?
que não tudo
desde o lá ao agora
que não está
aquilo que ser
sem que seja como sendo
o longínquo de um algo de dentro
o que nunca em nunca momento
sonho que sonha o meu real
o outro lado do que não o outro
além-me-ar estando aqui
pelo sono do teu quintal

flor que cheirou o meu gesto
sem tocar a minha mão
fuga invisível de um verso
ao voo do que não me fui
em estares de imaginação
o  mas do que me distância
e longos pelos teus cabelos
olhos  no éter sem sê-los
que terminam em um nada
e começam em um fim...

e tem também o outro lado
que é aquilo que sim

28 abril 2014

Um Conto (de Horror)

o meu conto
é rápido:

conta a história de um homem
um coitado
que só com o que contava na vida
era o ato de contar seus contos
de réis
irreais
em moedas sem conta
e o tudo mais
não era da sua conta...

e contando convicto
nem se deu conta
de que em contra do que cria
lhe tomava conta
um corvo com seu canto
a lhe tomar sua cota
e lhe fazer sua compra
de um pé na cova

agora o cara
que contava seus contos
está se contorcendo num canto
pendurado por uma corda
e pelas suas costas
uma cobra
vem cobrar sua conta

26 abril 2014

Sobre umas Tripas

eu pouco fiz que me tornasse lido
tudo que digo não pretende o mundo
um vale sujo não me importa tê-lo
então meu selo é como um vinho extinto
sonho já ido com estas lentas mortes
que de tão fortes nem nos dizem nada
como na estrada aquele bucho aberto
que de tão perto nem nos é mais visto:

gato-mourisco atropelado a um canto,
o humano pranto é bem mais podre e findo


(Obs.: Claro que o gato-mourisco na imagem acima não está com o "bucho aberto" como digo no poema, mas poderia, afinal foi atropelado e morto. Os atropelamentos de animais selvagens nas estradas é algo que me preocupa e me entristece, mas as pessoas em geral não estão nem aí, pois não se preocupam nem com suas vidas e com as demais vidas humanas, quem dirá com as dos animais... O ser humano prefere "mostrar que seu carro corre e tem motor" do que respeitar a vida humana e a vida dos animais selvagens.)

23 abril 2014

das Artes

só há compreensão
de alma para alma:
quem não a tem em si
não a percebe no que é outro
nem nos seres
nem nas coisas
nem nas artes

nem no todo
nem nas partes

somente o que tem alma
capta o que de alma
há no que é
(para quem não a tem
não há nada)

alguns questionarão:
“mas...
de que tipo de alma ele fala?”

para quem a tem
não é preciso que se diga
já se entende
com o que se cala

21 abril 2014

O Seio

a Noite
é uma flâmula do Fim:
um símbolo do que se finda
com o  brasão do que retorna

há na noite
o sonho  dos românticos
a dúvida dos barrocos
o mistério dos simbolistas
e o corrosivo dos pós-modernos:
a noite e seus medos são eternos

não se pode impedir
que a noite sempre seja
e nem se pode ver além
do que ela traz em seu (v)entre

por mais sol
que brilhe nos olhos da bela
seu olhares hão de sempre fechar
que anoitece a vida
o ideal anoitece
e anoitece amar

em tudo e em todos
a mão da noite (re)pousa:
das alegrias desbotam as camisas
dos sorrisos despencam os dentes
e do poder brocha o cetro

o adeus aguarda
no trono do tempo
e o seu aceno de réquiem
nos sempre alcança:
tudo se cansa...

a própria Luz
foi da Noite que veio
que a noite é a origem e o destino
e tudo descansa
em seu fêmino seio

19 abril 2014

Aos Babacas que Acreditam em Progresso

"Eu poderia ficar em casa. Poderia trancar a porta e brincar com tintas ou qualquer coisa assim. Mas, de alguma forma, tenho que sair, e ter a certeza que toda a humanidade é uma grande merda. Como se fosse mudar…"

Charles Bukowski


quando saio nas ruas pelas manhãs
percebo o quanto as ruas pelas manhãs
são um porre
(ah, quem dera fossem um porre):
aqueles montes de gente amontoada
que nem percebem que não passam de montes
aquelas gentes
apressadas
atarefadas
estressadas
esvaziadas
mecanizadas
pouco mais que nada

pra lá e pra cá como moscas tontas
a comprar merdas e pagar contas
seguindo aquela vida (f)útil
arrastando suas mori bundas
e afundando seus cus
nos seus carros do ânus
com aquele sorriso estúpido
de quem contribui para o progresso
(ainda há babacas que acreditam em progresso)
da sua cidade do seu país da civilização
certas de que estão certas
de que existe papai noel
desenvolvimento
e evolução...

quando saio nas ruas pelas manhãs
me deploro com o que há-de:
que é o lembrar de que o que vejo
trará o futuro da humanidade...

17 abril 2014

Sexta-Feira Sânscrita

tristeza de não-antídoto
e sorriso de fundo trágico:
há um hálito  que seja válido?
entendo teu gesto lânguido
e o que sonha teu rosto sânguino:
que o resto se arrasta rápido...

a todos há uma forma de símbolo
há horizontes que  talvez sejam pórticos
há a agonia da vela e da lâmpada
a chama escarlate cálida e tântrica
e halos na lua alando em céu tríptico

há o longínquo-não-ser de um ósculo
e a mim...
algo de Fim no teu olhar crístico

(Na imagem, parte do Retábulo de Isenheim, de Grünewald)

15 abril 2014

da Insatisfação

o sofrimento
deveria ser mensurado
não pela espécie de sofrimento
mas pela relação
sofrimento – anseio

sofre a pessoa
não exatamente
pelo que ela é
ou deixa de ser
não pelo que lhe acontece
ou deixa de lhe acontecer
não pelo que ela vive
ou deixa de viver
mas pelo que ela gostaria
de ser
ou que lhe acontecesse
ou que fosse a sua vida
sofrimento
é alguma coisa
não vinda...

o tamanho do sofrimento
é o tamanho da insatisfação

uma vida com tudo
ou uma vida com nada
pode dar no mesmo:
o sofrimento
se mede pelo desejo


13 abril 2014

O Vazio Absoluto da Política em Santiago

Algumas pessoas já me questionaram, e há tempos, e continuam fazendo, entre amigos e conhecidos, a respeito de por que eu não participo mais da política de Santiago, atuando mais diretamente e até mesmo me filiando a um partido. Minha resposta sempre foi: não é a minha função e não gosto desse tipo de atuação. Mas posso esclarecer mais sobre o assunto. 

Na verdade, o melhor a se fazer com a política santiaguense é largá-la de mão, definitivamente, porque não há nada em que se segurar, enfim, não há nada de jeito nenhum nessa política: não há verdadeira preocupação social nem cultural, não há real preocupação com o povo, não há conteúdo, não há substância ou sensibilidade política, não há ideologia ou ideais, não há bom senso, não há união entre os que poderiam ser opositores, não há coragem, não há vergonha na cara, não há atitude, não há dignidade...

Porém, pensando por outro lado, até  que há muitas coisas, e até em demasia, na política santiaguense: há coxilhas de  incoerência, há montanhas de puxa-saquismo, há total ausência do senso do ridículo, há pessoas cabresteadas, submissas e ignorantes, há quilos de maquiagem, há monumentos de futilidade, há grandiosas fachadas, há quilômetros de aparência, há toneladas de gordos churrascos, astros de vergonha, galáxias de vazio, cosmos de mediocridade e universos de hipocrisia.

Esse texto é minha contribuição definitiva para a política de Santiago. 

10 abril 2014

Tu, Tempo

Tu, Tempo, és Deus...
teu é o trono
que traga
ao que  te trago
e a que me entrego
além de ti
a treva
a que não ninguém
se atreve

todo trovão que tange
e todo troar martelo
vêm todos do teu trajeto
no torvo do que tememos

desde os tridentes
de tuas serpentes e tigres
às trombetas
que trompam na tua tocha
desde a tormenta
que taça entre teu trágico
até a traça
entre as turbas arrastada
às tampas das tuas tumbas

ave Tempo!
águia Tempo!
e o pulo preciso do teu puma
e o punho de peso do teu pulso...

desde os passos do teu compasso
à pressa do teu presságio
e à presa da tua praga
ninguém pisa o teu punhal
e nada te apaga

é a ti que se paga
em que se prepara o pesar
da tempestade

do templo de teu temporal
é que Tu, Tempo
(que a vida abraça)
trazes entre as torres
um raio
do que Verdade
de força e de fúria
de glória e vitória

(que o tempo passa...)

08 abril 2014

de Merda e Mediocridade

I

a humanidade
é a soma geométrica
de todas as merdas
de cada um de nós:
progredimos
pelo bueiro avante...
mas não é esse o problema
o problema
é que os humanos
tomaram laxante

II

as pessoas dizem:
“a humanidade é medíocre”
mas a humanidade
é formada pelas pessoas
logo
as pessoas são medíocres
eu sou uma pessoa
logo
“eu sou medíocre”
bem, isso
as pessoas não dizem

05 abril 2014

da Grave Falta da Água

qual água preencherá
o vazio de se não-ser?

mais seco
que qualquer leito
(de qualquer rio
em qualquer seca
pela terra agoniante)
é o vácuo esvaziado em pó
(e varrido de horror
sempre mais adiante)

...mais seco
que qualquer leito...
é a terra árida
do humano peito

todo o esgoto
das águas do mundo
não é páreo
ao seu coração esgotado
esgotado
como quem cortasse
sua própria artéria
de cima abaixo
e de lado a lado

nenhuma semente germinará
nem das mais reles ervas
nem das mais tênues palmas
na esterilidade esfarelenta
disto que chamam de
 “humanas almas”

e, meu Deus, que Sede...

quando é que chove
no que é trágica?
vou ver se (sobre)vivo
com a minha última gota
de lágrima

03 abril 2014

Nenhum Fundamento

as pessoas se habituaram
a viver a vida que vivem
como se a vida
fosse só isso que vivem

a vida
por que assim?
quem levanta de sua cama
levanta para quê?
o trabalho
é um trabalho
para qual objetivo?
e alcançado o objetivo
o que é que resta
do que fica?

quem dorme
descansa de qual cansaço?
e para que se cansou?

saímos todos os dias
para viver a vida
dentro do mundo
e estamos convencidos
de que a vida é essa
e de que o mundo é esse
e de que o que fazemos
é o que deve ser feito

ninguém se pergunta nada
e não se faz
nenhum questionamento

e eu até seria apedrejado
se dissesse que tudo isso
da forma como é visto
não tem nenhum fundamento

01 abril 2014

Imagem sobre Brahms em Pragmatha

O poema "Imagem Sobre uma Melodia de Brahms" foi publicado na edição 55 do Caderno Literário Pragmatha, de Porto Alegre, que trouxe como tema "Música". Para ler o poema, clique sobre a imagem abaixo.