04 março 2009

Conto Violento e Inútil


Um raio absurdo e de titânicas ramificações caiu do céu onde uma tempestade nunca antes vista flagelava minha cidade acabada. O raio abriu uma cratera na rua de onde brotou uma fonte de sangue. Ainda não anoitecera, mas era como se fosse noite. Antes fosse apenas noite. Os raios iluminavam um horizonte funestamente escurecido, porém iluminavam de forma deprimente e enferma. Fumaças e vapores de uma tristeza devastadora pairavam como maldições nas atmosferas corrompidas. E eu nada podia fazer. Ergui minha voz pressaga, e minha voz era inútil. Gritei e ninguém me escutou. Esqueletos rangiam e caíam nas fúnebres distâncias. Minhas preces não serviam mais para nada. Antes aquele raio tivesse aniquilado minha voz.

Uma ventania de implacável violência e quente como as labaredas dos desertos arrancou-me os cabelos. Muito antes disso, os sopros do inferno humano já haviam crestado todos os meus sonhos. Agora somente sinto o cheiro de queimando de suas asas sobre o meu pesar. De que serviram todos os meus sonhos? Antes aquele raio tivesse aniquilado também o cheiro das asas inúteis dos meus sonhos...

Eu era um membro da humanidade. Eu era toda a humanidade. Um inútil. Antes aquele raio tivesse caído sobre a minha cabeça. Como agora caem aquelas aves mortas sobre a minha cabeça ardente. Caem aquelas aves sobre as ruas enlameadas por onde perambulo acabado. Mergulhei meus pés descalços e feridos sobre o rio de sangue que jorrava sem cessar das entranhas da terra massacrada. Ergui minhas mãos aos céus tenebrosos, minhas mãos em carne viva, e não consegui sustê-las. Minhas mãos não adiantavam de nada. Antes tivessem sido extirpadas por aquele raio filho da tormenta sem fim.

A chuva ácida que golfejava da boca da morte ardia em meus olhos encovados e sangrentos. Ainda assim em desespero eu lutava para tentar olhar ao meu insuportável redor. Quando os relâmpagos anômalos canhestramente iluminavam os escombros da cidade, eram somente cadáveres de humanos e animais que torturavam os meus olhos.

E uma tormenta de nuvens negras tensamente carregadas despencou sobre a desolação dos meus olhos. Olhei para o sol cinzento e enfermiço que agonizava por trás das nuvens mórbidas e vi que meus olhos eram inúteis. Antes aquele raio tivesse esmagado o meu olhar.

Meu coração cansava-se de bater. De tudo o que tivera sentido, de tudo o que tivera amado, fora tudo absolutamente inútil. Antes aquele raio tivesse devastado o meu coração. E um mar de solidão ao som de trombetas que se alastrou com a chuva férvida e com o vendaval ácido causou profundo e incurável corte em meu peito apunhalado. E o sangue jorrou de meu corpo como as correntezas dos rios hoje negros, fétidos e secos. E fitando o horror que eu havia herdado, chorei condenadamente. E senti na pele inflamada que minhas lágrimas eram inúteis. E desejei que aquele raio houvesse massacrado minhas lágrimas.

E os meus pensamentos incendiaram de súbito quando pensei em tudo o que eu havia feito. Contemplando estarrecido a total ausência de vida, julguei-me culpado de todas as culpas, de todas as mortes, de toda a destruição. E pensei e refleti em desespero em tudo o que fiz e deixei de fazer do mundo e da vida que havia recebido, e minha mente jamais encontraria soluções. E percebi que meus pensamentos eram inúteis. Então pedi aos céus transtornados que aquele raio dizimasse os meus pensamentos.

E aqueles rostos dantescos e apocalípticos dos monstros e fantasmas que eram agora minha única companhia nunca deixavam de fitar minha face tragicamente refletida no céus de todos os desastres. Irradiava-se uma espantosa malignidade daqueles rostos. Eles culpavam-me, julgavam-me, sentenciavam-me como o responsável pelo Fim. Tentei reavivar o cadáver do tigre que antes fora meu amigo. Mas o veneno da água havia ceifado definitivamente sua triste existência. Abri minha boca, e um jato de vômito sanguinolento encharcou a miserável pelagem do tigre.

Estertorando, ajoelhei-me e implorei misericórdia. Mas compreendi que meus joelhos eram inúteis e supliquei para que o raio acabasse com meus joelhos. Restava só eu no mundo, eu era a humanidade inteira.

Foi então que um anjo vermelho desceu como uma flecha incendiada dos céus em eterna tempestade e apontou seu dedo implacável para a minha alma. Os relâmpagos e os trovões o acompanhavam e me cegavam e me ensurdeciam.

O anjo fez sair um sopro de sua boca, e desse sopro formou-se fatal furacão. Nele se debatiam sem trégua as minhas esperanças esquartejadas. O furacão arrancou minha alma de meu corpo. Eu caí inerte no chão de lodo ensanguentado. E minha alma voou conturbada entre a fúria do furacão que se dirigia a um ponto de tênue luminosidade no céu carregado. E um trágico Réquiem desconhecido soou nos meus ouvidos exaustos. Lá estaria Ela para receber minha alma. Ela reuniria os pedaços de minha alma estraçalhada. Minha alma teria alguma utilidade? E a humanidade principiou seu Descanso...

2 comentários:

M. D. Amado disse...

Sensacional Reiffer! Gosto muito da parte da imobilidade. Tenho uma certa fixação por isso hehe... Talvez minha prima psicóloga explique isso hahahha...

Como sempre, maravilhosamente bem escrito e com uma narrativa que me fez imaginar cada sensação da personagem.

Parabéns!

Micheli Pissollatto disse...

Concordo plenamente com M. D. Amado. Magnífico conto, conturbado, asfixiante! Parabéns.
"O anjo fez sair um sopro de sua boca, e desse sopro formou-se fatal furacão. Nele se debatiam sem trégua as minhas esperanças esquartejadas." Ótimos versos.