08 janeiro 2009

Morte Lenta

Ao coaxar de sapos exaustos uma canção estranhamente triste foi alçando seu voo esgotado. Ninguém a ouvia... Subia como um incenso pesado, denso, nervoso. Um incenso de odor carregado e pálido. Talvez não um incenso, talvez uma fumaça tensa, um fumo de um cigarro cósmico lentamente consumido e golfejado pela garganta. Será que só eu estava ali?

A nuvem cinza que surgiu por sobre o cinamomo amarelado não era simpática. Havia algo de alerta nela. O sol era mortiço, adoentado, insalubre. Causava-me uma febre desanimante, mas a nuvem não ousava cobrir aquele sol enfermiço. Ainda. E como era longa aquela nuvem. Por mais que eu tentasse, eu não conseguia avistar o seu fim. E como ela pairava em uma extrema e angustiante lentidão... Deitei-me no chão e comecei a me arrastar, erguendo pesada e dificultosamente os braços. Como tudo era difícil pra mim. Eu não queria ouvir aqueles lamentos, mas eles queriam que eu os ouvisse. Como eu não sou ninguém, necessitei ouvi-los. E cada vez mais cinza era a nuvem. Aquela canção incessante de uma insuportável tristeza de Poe aliou-se aos nimbos sem sorte. Talvez fosse ela própria. E nos horizontes anômalos soou uma marcha cansada...

Vermelhos. Eram agora escarlates os horizontes. Lembrei-me da febre escarlatina e das feridas da peste bubônica. Era de lá que partiam agourentas as notas da marcha cansada. Compasso quatro por quatro, e o exército de pesadelos caminhava junto. Extenuado. Eu arrastava-me, cantando canções de compositores já mortos. Não sei por que, voava nas asas dos urubus a solene tranquilidade escura que precede as tempestades. E os passos cresciam em intensidade. Pesados. Noturnos. Tambores.

“Réquiem do Sol”! gritou-me Cruz e Sousa. Quem é que acordava comigo? O bafo de um lobo negro gelou-me o sangue. Fixei minha mente nos seus olhos. Só tristeza eu encontrei por lá. Tristeza e cansaço. Cansaço e crepúsculo. O lobo suicidou-se no galho seco do cinamomo. Sol febrento, que dá ânsias de vômito. Senti náuseas. Não me sinto bem. Do lado do cinamomo nasce um cipreste. Cinza. Quase negro como a nuvem, agora quase negra. A paz pressaga que precede as tormentas. Os raios longínquos, distantes como o teu amor. A Marcha! Os trovões como os sussurros das promessas que não foram. Tua alma olhando doce pela porta noturna da “mão fatal que escreveu na minha vida...” Árvores... de Azevedo onde azedam meus sonhos.

Trovões distantes. Sonatas de corvos. Cios de gatos sem gatas. Terra vermelha dos cemitérios da campanha. Uma cruz caiu e ninguém juntou. Será que só eu estou aqui? Quem canta seus males espanta, quem canta seus males espanta, quem canta seus males espanta... Fúnebre. Lúgubre. Marcha. Tímpanos soando como caveiras que batem em tambores. Quem é que vem? Está longe ou já vem perto? Perto? Um deserto! se estendeu por sobre o sangue. Nem agora vais sangrar na minha boca? Deus! Começou a soprar aquele vento! Brisa leve e fria, brisa leva e ria, brisa calma que precede os temporais. Não mais... Nunca mais.

Os vossos risos calaram-se como cala a madame confiante que é assaltada na noite. Vento mais forte, que cresce e ressurge como os passos, como o som de botas velhas e sujas, como um sorro que foge em desespero pelo campo seco mergulhado em ocaso. O sol enfermiço sumiu. E o vento cresce como o cipreste negro. Quem é que olhou para trás? Mais frio. Que olho estranho, soturno em pânico, inquietante, absurdo, profundo como tudo o que não foi! Saudades... Meu Deus, quem foi que olhou, quem foi? Que angústia infinita e exausta nunca para de chorar? Uma gota de chuva nos meus lábios. Até quando? De quem era aquele olho? Por que eu sozinho aqui? O que foi que eu fiz? O sangue gradativamente coagula-se, e só eu escuto o coaxar dos sapos. Assombra como cresceram os ventos. Furacão! A Sombra... Alguma coisa voou...

Na noite eclipsada pairou um anjo. Não consigo ver se suas asas são de coruja ou de morcego. Não era um anjo, mas um arcanjo. Som de patas. Cavalos. Lentos. Espadas desembainhando-se. O arcanjo pousou sobre o cipreste. Ele bem que me disse que pousaria... Relinchar de cavalos... Marcha... Do relógio berraram meia-noite. Subiu o vapor negro de um rio...

Segundo movimento da 3ª Sinfonia de Beethoven. Tu não quiseste ouvir comigo. Medo... Marcha extremamente lenta. Mas Marcha... Mas Morte. Ouço passos pesados no tempo... É assim que caminha a humanidade...

Um comentário:

Micheli Pissollatto disse...

Nota-se o pavor, o tormento em cada linha. Belissimamente insano!